sábado, junho 28

Carta aberta ao Cristiano Ronaldo

Caro Cristiano,

Sou um jovem de Almada que, apesar de não ter o teu talento com a bola nos pés, até nem se desenrasca mal quando veste as luvas de guarda-redes. A propósito, tenho por hábito jogar às segundas-feiras em Moscavide com o pessoal do trabalho. Dado que por vezes faltam jogadores, será que podemos contar contigo para reforçar a equipa? (não quer dizer que te chamemos já para a semana, mas fica com o telefone ligado, pois pode ser que haja vaga)
Permite-me que aproveite a oportunidade para enaltecer as tuas qualidades atléticas e a dedicação com que nos brindas em campo, jogo após jogo. Para quem se passeia de R8 e já facturou a Merche Romero, a afirmação: “o futebol é a coisa que me dá mais prazer na vida” demonstra um carinho sem precedentes pela profissão.
Envia-me por favor uma camisola tua do Manchester… e já agora uma do Real Madrid. Não é por mim, eu investi em dois conjuntos da Kipsta que estavam em promoção no Decathlon e já não tenho espaço para guardar mais tralha, mas a minha namorada alertou-me para que isto de brincar ao bombeiro e à “cheerleader” já cansa e que, ou me visto à Ronaldo e dou 200 toques na bola, ou sou eliminado da competição.
Bom, por aqui me fico que já é quase hora de jantar e ainda tenho de escrever à Jessica Alba.

Um abraço,


David

domingo, junho 22

Humor negro

Do operário ucraniano que escorrega e parte uma perna aos autarcas pouco honestos que desbaratam as finanças camarárias, passando pelos maridos enganados que descobrem um amante peludo no armário, as fronteiras do humor estão perfeitamente definidas. O mundo dos vivos pode por ora ser explorado sem pudor, estando o reino das almas penadas vedado às farpas do parodiante.
Na morte tudo é triste e enfadonho. O que seria de esperar de um estado cujo apogeu decorre num cemitério lotado, ao som de pazadas de solo argiloso, gritos histéricos e choro convulsivo?
Tendo por base os reports fidedignos dos mediums da praça, sentido de humor é algo que tem faltado aos representantes do além. Conviver diariamente com Judas e Hitler deve ser deprimente à brava... para mais, comunicar a localização do tesouro do Barba Ruiva e o paradeiro do Elvis requerem sobriedade e protocolo.

Não me tenho por hipócrita, ficando por isso registado neste espaço a minha predisposição para aceitar pacificamente toda e qualquer piada sobre o meu estado cadáver. Estou certo que, se as tiradas forem boas e madeira da urna medíocre, será possível escutar o meu riso cúmplice.

domingo, junho 15

Bagageiras XL

Interessado na generalidade dos conteúdos relacionados com o mundo automóvel, acompanho com regularidade as inovações e tendências desta indústria.
Assisto entusiasmado a novas e interessantes propostas ao nível das motorizações, assim como ao acentuar das preocupações com a segurança dos ocupantes.
Continuo contudo sem compreender a paranóia com o aumento da dimensão dos veículos de geração para geração. Grosso modo, tal não se reflecte ao nível espaço disponível para as pernas dos transportados, mas na volumetria da bagageira. As cada vez maiores cotas disponíveis para o acondicionamento de carga com e sem rebatimento dos bancos são argumentos orgulhosamente exibidos pelos fabricantes.
Para quem deseja transportar um caixão e não pretende fretar os serviços de uma funerária, será mesmo necessário enveredar pelas novidades XL do mercado porém, para os que optam por passar o fim de semana fora transportando uma mochila, uma lancheira e uma mala pequena, talvez um utilitário de 93 continue a ser mais do que suficiente.

segunda-feira, junho 9

Reconhecimento póstumo

Para os homens das letras a fama surge geralmente muito depois de explanarem o seu génio. Um pouco na linha do que sucede na pintura, para se ser um escritor reputado interessa não só ter uma obra extensa e valorosa, mas sobretudo estar-se morto. Tal constitui uma tremenda injustiça, pois quando chega a hora de dar os autógrafos, gozar os bons carros e viajar mundo fora, já só podemos mandar mudar o veludo do caixão.
Onde quer que se encontrem, Pessoa e Camões devem estar roídos de inveja com a fama que as suas auras foram gerando, anos passados após o seu enterro como miseráveis desgraçados. Pelo que consta na sua memória bibliográfica, eram bem dados ao “putedo” que, como sabemos, vive atrelado ao nível de reconhecimento que um indivíduo atinge.
Dito isto, se alguém vislumbra algum potencial nesta minha escrita apaixonada, que não se sinta inibido de me endeusar de imediato.

domingo, junho 1

Rattus norvegicus

As experiências em laboratório são especialmente úteis para validar pressupostos académicos, constituindo-se como provas inequívocas da evidência científica.
Os ensaios clínicos com humanos estão por ora fora de moda, pois torna-se desgastante e oneroso lutar em tribunal contra pais histéricos a quem nasceu uma criança bicéfala e com o coração a latejar fora do tórax.
Felizmente os roedores são ambivalentes. Quando os testes com estes pequenos animais correm de feição, a postura a adoptar perante o grande público deverá ser: “Não receiem, o produto foi meticulosamente experimentado em ratos e nada de grave sucedeu”. Ao invés, quando estamos dispostos a descredibilizar um concorrente, basta bramir: “Confiar em tais resultados? Mas isso foi testado em ratos!”